quinta-feira, 2 de junho de 2011

A PALO SECO

Apesar dessa imensa e inesplicável felicidade, cala (sempre) no fundo do peito um trinado de martelo em oficina de ferreiro pelas tarde mortas da infância: um martelar que é, sem dúvida, do coração, ávido de vida e de luz...


A PALO SECO

1.1.
Se diz a palo seco
o cante sem guitarra;
o cante sem; o cante;
o cante sem mais nada;
se diz a palo seco
a esse cante despido:
ao cante que se canta
sob o silêncio a pino.
1.2.
O cante a palo seco
é o cante mais só:
é cantar num deserto
devassado de sol;
é o mesmo que cantar
num deserto sem sombra
em que a voz só dispõe
do que ela mesma ponha.
1.3.
O cante a palo seco
é um cante desarmado:
só a lâmina da voz
sem a arma do braço;
que o cante a palo seco
sem tempero ou ajuda
tem de abrir o silêncio
com sua chama nua.
1.4.
O cante a palo seco
não é um cante a esmo:
exige ser cantado
com todo o ser aberto;
é um cante que exige
o ser-se ao meio-dia,
que é quando a sombra foge
e não medra a magia.
2.1.
O silêncio é um metal
de epiderme gelada,
sempre incapaz das ondas
imediatas da água;
A pele do silêncio
pouca coisa arrepia:
o cante a palo seco
de diamante precisa.
2.2.
Ou o silêncio é pesado,
é um líquido denso,
que jamais colabora
nem ajuda com ecos;
mais bem, esmaga o cante
e afoga-o, se indefeso:
a palo seco é um cante
submarino ao silêncio.
2.3.
Ou o silêncio é levíssimo,
é líquido e sutil
que se ecoa nas frestas
que no cante sentiu;
o silêncio paciente
vagaroso se infiltra,
apodrecendo o cante
de dentro, pela espinha.
2.4.
Ou o silêncio é uma tela
que difícil se rasga
e que quando se rasga
não demora rasgada;
quando a voz cessa, a tela
se apressa em se emendar:
tela que fosse de água,
ou como tela de ar.
3.1.
A palo seco é o cante
de todos mais lacônico,
mesmo quando pareça
estirar-se um quilômetro:
enfrentar o silêncio
assim despido e pouco
tem de forçosamente
deixar mais curto o fôlego.
3.2.
A palo seco é o cante
de grito mais extremo:
tem de subir mais alto
que onde sobe o silêncio;
é cantar contra a queda,
é um cante para cima,
em que se há de subir
cortando, e contra a fibra.
3.3.
A palo seco é o cante
de caminhar mais lento:
por ser a contra-pelo,
por ser a contra-vento;
é cante que caminha
com passo paciente:
o vento do silêncio
tem a fibra de dente.
3.4.
A palo seco é o cante
que mostra mais soberba;
e que não se oferece:
que se toma ou se deixa;
cante que não se enfeita,
que tanto se lhe dá;
é cante que não canta,
cante que aí está.
4.1.
A palo seco canta
o pássaro sem bosque,
por exemplo: pousado
sobre um fio de cobre;
a palo seco canta
ainda melhor esse fio
quando sem qualquer pássaro
dá o seu assovio.
4.2.
A palo seco cantam
a bigorna e o martelo,
o ferro sobre a pedra
o ferro contra o ferro;
a palo seco canta
aquele outro ferreiro:
o pássaro araponga
que inventa o próprio ferro.
4.3.
A palo seco existem
situações e objetos:
Graciliano Ramos,
desenho de arquiteto,
as paredes caiadas,
a elegância dos pregos,
a cidade de Córdoba,
o arame dos insetos.
4.4
Eis uns poucos exemplos
de ser a palo seco,
dos quais se retirar
higiene ou conselho:
não o de aceitar o seco
por resignadamente,
mas de empregar o seco
porque é mais contundente.



João Cabral de Melo Neto


(Quaderna. In: Poesias Completas,1975, p.160)

sexta-feira, 6 de maio de 2011

CONTOS FARPADOS, de Jesus Irajacy Costa

LANÇAMENTO







Contos Farpados
(Expressão Gráfica e Editora)
de Jesus Irajacy Costa
ganhador do Prêmio Literário para Autor (a) Cearense
Prêmio Moreira Campos, de CONTOS, da SECULT/CE

Lançamento:
Data: 10 de maio de 2011 (terça-feira)
Horário: a partir das 19h30min
Local: Centro Cultural OBOÉ (rua Maria Tomásia, 531, Aldeota ao lado do shopping Aldeota Open Mall)

Apresentação da Obra e do Autor: Ângela Gutierrez, membro da Academia Cearense de Letras e Professora do Curso de Letras da UFC
Para aquisição de livros e contato com o Autor: irajacy@yahoo.com.br



Sobre a Obra: Há uma longa e importante tradição de médicos escritores na literatura cearense. Nomes como os do Barão de Studart, Herman Lima, Florival Seraine e Caetano Ximenes Aragão lançaram as bases dessa tradição, mais recentemente escritores do quilate de Ronaldo Correia de Brito, Aírton Monte e Pedro Henrique Saraiva Leão, dentre outros, solidificaram essa importante parceria.

Uma nova geração de ficcionistas médicos tem despontado na atualidade, vencendo prêmios literários, publicando em suplementos e revistas culturais, fazendo movimentos artísticos, principalmente através da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (SOBRAMES/CE), em suas coletâneas anuais ou ainda na excelente revista LITERAPIA.

Nessa jovem geração pontificam os escritores Fernando Siqueira Pinheiro, Almir Gomes de Castro e Jesus Irajacy Costa, que nos apresenta esta bela reunião de histórias: Contos Farpados. Nela temos contos já premiados e publicados em antologias, revistas, suplementos e sites na internet, assim como trabalhos inéditos.

Relatos instigantes e bem contados, de temática e ambientação variadas, vão desfilando pelas páginas deste livro que promete ser apenas o início de uma vitoriosa e longa trajetória literária. Talento, trabalho e acuidade verbal não faltam ao autor.

A nós, leitores, só nos resta desfrutarmos cada página deste grande livro, e torcermos para que no futuro sejamos presenteados por mais outros de igual ou superior qualidade.



Pedro Salgueiro

TRÊS ANOS SEM JAP

QUANDO MORRE UM POETA por pedro salgueiro

“Eu sou eu, íntegro e inviolável dentro de mim mesmo. (…) O que está no limiar e afogado no abismo.”
(José Alcides Pinto, 10/09/1923 — 03/06/2008)



Quando morre um poeta o mundo fica lastimavelmente mais pobre.

Terrivelmente mais triste. Inevitavelmente mais feio.

Às 11h15min de um sábado, dia 31 de maio de 2008, um imenso dragão, disfarçado de motocicleta, atacou impiedosamente o velho poeta, de 85 anos, José Alcides Pinto, em plena Rua General Sampaio, bem em frente ao palacete conhecido como Vila do Barão, de ladinho da Praça da Bandeira, nos arredores da Faculdade de Direito do Ceará.

O rapaz da banca de revista próxima disse que ele havia passado cedo com alguns envelopes na mão, “dessa vez não vinha com a moça loura”, completou; no envelope iam os dois livros recém publicados, mas ainda não lançados, que despacharia para alguns amigos do Rio e São Paulo. Voltava devagarinho (talvez ainda não recuperado do cobreiro que o maltratara meses atrás), esperou debaixo de uma árvore o trânsito acalmar, apressou o passo e… Parou no meio da pista ainda molhada pela garoa de fins de maio, quando finalmente avistou o pássaro enorme em vôo rasante, ainda deu pra notar o vermelho dos olhos da fera, as teias de aranhas das asas e o barro seco das garras, que era com certeza lá das coroas do rio Acaraú.

O poeta saiu quebrado numa ambulância, o motoqueiro foi manquitolando atrás; a moto esquecida na sarjeta. 40 minutos depois sua filha passa tranqüilamente na mesma calçada; o rapaz da banca grita para avisar do acidente, ela apressa o passo fugindo do enxerimento. Quem deve ter lhe contado a triste notícia?

No dia 02 de junho a alma, também magérrima, do nosso saudoso poeta maldito foi, na frente, esperar pelo corpo que já ia em cortejo rumo a São Francisco do Estreito, Santana do Acaraú, Fazenda “Terras do Dragão”, comboiado por Sérgio Braga, Lustosa da Costa, Audifax, José Teles, Carlos Augusto Viana e outros amigos do peito. Deu tempo ainda de pôr os últimos números em sua lápide, que havia sido meticulosamente preparada por ele anos antes. Não havia tido coragem de adivinhar o último algarismo. Reencontrava enfim seu pai, sua terra, sua paz…



SOB O SIGNO DA POLÊMICA
Na juventude freqüentava a casa de Otacílio de Azevedo, convivendo com os filhos do pintor e poeta, Rubens, Miguel Ângelo (Nirez) e Rafael Sânzio; já tinha um jeito despojado e falaz.

Sua alcunha entre os estudantes era “Alma de Gato”, talvez pela magreza exagerada.

Sua ida para o Rio, sua volta à terrinha, sua saída do emprego na Universidade Federal do Ceará, seu uso de um traje franciscano, sua adesão ao nascente concretismo, seus amores e desamores, enfim, seu comportamento de uma vida inteira foi marcado pela polêmica.

Enquanto os outros grandes poetas de sua geração vestiram o paletó e(ou) a camisa da oficialidade e(ou) o da reclusão, ele arriscou a jaqueta surrada da marginalidade e da maldição; enquanto uns cavavam prêmios e condecorações e outros se fechavam mais e mais em seus casulos, ele corria calçadas, mexendo com as moças, instigando jovens poetas sujos e cabeludos, espalhando boatos difamatórios sobre si mesmo. Criou uma imagem tão forte e polêmica sobre ele próprio, que às vezes ele mesmo esquecia quem realmente era: um sujeito frágil e religioso, bom pai, que ia à missa toda semana e rezava antes de dormir. E tinha uma das gargalhadas mais sinceras que conheci.

Sempre estava cercado (e ajudado) por uma leva de boas almas, mas também por uma corja de parasitas, cujas benesses (e elogios) ele sabia manipular com maestria; todos admiradores de seus poemas e de seu comportamento arrojado. Sobre os de boa-fé quase sempre despejava injúrias, não raro alguns de seus melhores amigos e colaboradores saíram magoados de seu convívio; em cima dos oportunistas jogava iscas, elogios falsos e prefácios não escritos. Sempre esteve acima do bem e, principalmente, do mal; todos debitavam suas ações polêmicas ao seu gênio literário. Os ofendidos perdoavam sempre; os canalhas engordavam à sombra de suas asas negras.

Estava acima do bem e do mal: tanto fazia engendrar um poema genial (e pendurá-lo no arame do varal) como caluniar um amigo que tanto o ajudara. Todos o perdoavam com um rizinho de escárnio.

Estava acima do bem e do mal.



UNS ALTOS MUITO ALTOS, UNS BAIXOS…
Ao amigo que me dizia que ele tinha altos e baixos, eu retrucava: “— E qual o poeta que não os têm!?”. Depois lembrava que para cada poema fraco dedicado a Lady Diana ou Chico Mendes (ou algumas rimas escatológicas) ele tinha no mínimo uma dúzia de versos endiabrados.

Precisaríamos de alguém com muito talento, coragem e ética para fazer um inventário de sua vida e obra; alguém com isenção estética e moral para mapear suas forças e fraquezas.

Talvez com a devida distância do corpo físico.



A CAVERNA DO DRAGÃO

Na minha “Crônica da Gentilândia”, do livro Fortaleza Voadora, digo: “…e o velho dragão Alcides Pinto sobrevoando as copas das árvores, com suas asas negras — quando ele se cansa de resmungar sozinho em sua caverna e sai para assustar os últimos bêbados da Gentilândia”.

À sua casa corriam as mais diversas faunas literárias; escritores de várias idades, ideologias e estéticas, principalmente os mais jovens, que ficavam embevecidos com as atitudes despojadas, estridentes e loquazes do velho poeta.

Sua residência mais famosa foi a da Rua Rodrigues Junior, casa grande, sempre muito freqüentada; ainda hoje muitos contas histórias e causos nem sempre verídicos, muitas fantasias e traquinagens ficaram no anedotário boêmio-intelectual dessa nossa loirinha desmiolada pelo sol, tão pródiga em tipos populares e bodes YoYôs, literários ou não.

Já o conheci na Vila Cordeiro, na Av. Tristão Gonçalves, bem próximo à vilinha em que ainda hoje mora minha mãe. Habitava uma casa conjugada, numa pobreza franciscana mas digna, com sua querida filha Jamaica. Também conheci seu filho Antonin Artaud, um rapaz magro como o pai, porém de temperamento calmo, com uma timidez oposta à tagarelice do seu progenitor.

Convivi por um bom tempo com o poeta (era meados dos anos 1990), através dele e de suas muitas visitas fiquei sabendo dos subterrâneos de nossa literatura, tão pródiga em fofocas e vaidades. Ali tive um curso intensivo de como transitar, e sair sem arranhões (embora eu não tenha tirado boas notas em algumas matérias) da famigerada guerrilha literárias e suas disputas por farelos e migalhas.

Um dia me pediu para que organizasse seus contos, que estavam dispersos em um livro, Editor de Insônias (1965), e uma miscelânea, Reflexões, terror, sobrenatural (1984), além de alguns inéditos datilografados em folhar amarelecidas. Em 1997, o Dr. Martins Filho publica essa edição de seus contos completos, Editor de Insônias e outros contos, pela Coleção Alagadiço Novo.

Depois soube que ele andou criticando umas palavras que inseri como “Nota do Organizador”, ou sugerindo que eu estava querendo aparecer às suas custas. Nunca passei recibo nem tomei satisfação, apenas me afastei um pouco de seu convívio. Depois disso ele sempre repetia para mim ou para alguns amigos: “Se não fosse você, o livro não teria saído”, no que eu sempre respondia: “Pois não é, poeta. Quem sabe se um dia a gente não tira uma 2ª edição, não é!?”. No seu último livro tem um poema dedicado a mim (quem sabe ainda resquício de uma consciência pesada) e a Nilto Maciel, a quem levei, depois da volta definitiva deste ao Ceará, à sua casa e anunciei alto da porta:

“— Poeta, tô aqui com o maior contista do Ceará!”, no que ele perguntou lá de dentro: “— Quem, poeta, o Airton Monte?”, acabando de vestir as calças; caímos na gargalhada.

A última vez que o vi ele estava saindo da sua vilinha com a Jamaica, cumprimentei-o e ele me perguntou onde era o “Buraco da Gia”, pois estava querendo arranjar uma empregada e lhe deram um endereço, falei que era na Princesa Isabel, vizinho à minha casa, e fomos caminhando devagar. Quando chegou perto do beco ele parou, receoso, e disse que só entraria lá se eu fosse com eles, depois puxou uma pequena faca de mesa, dessas de cortar bife, e disse que estava preparado (mas que era bom eu entrar com ele, disse assombrado). Olhei para Jamaica, que também estava rindo, e disse que não tivesse receio que ali só morava gente de bem, e me despedi alegando ainda ir pegar minha filhinha no colégio.

Não tive coragem de ir vê-lo em seu velório na Academia Cearense de Letras. Queria ficar com a lembrança dele vivo, alegre e brincalhão.

E parece que estou vendo aquele sujeito magro (“tão magro que parecia estar sempre de perfil”, como bem disse, em seu A Guerra do Fim do Mundo, Vargas Llosa), com sua gargalhada sempre sincera, dizendo — e apontando pra si mesmo — para os muitos anjinhos (ou demoninhos, tanto faz) que lhe cercam em algazarra:

“— Agora quem manda aqui é esse poeta ‘Viadão Pós-Moderno’!”



“Eu sou aquele que come as flores do aniversário.”

(José Alcides Pinto, 10/09/1923 — 03/06/2008)










Pedro Salgueiro tem dois filhos, dez irmãos e derrubou algumas árvores para fazer diversos livros. Faz uns continhos que, de tão curtos, estão quase desaparecendo. Tem uma mãe que faz o melhor capote da cidade. Sente muita saudade de um pai que era sapateiro de chinelos e idéias.

GENEROSIDADE COTIDIANA

Generosidade cotidiana (Ronaldo Mnte)




Não vou falar da morte de Bin Laden, nem dos espetáculos midiáticos patrocinados pelas monarquias decadentes da Inglaterra e do Vaticano. Tampouco me interessa a composição da comissão de ética do Senado nem os rumores sobre a volta da inflação. Nada disso tem valor se comparado aos atos de generosidade com que somos contemplados no cotidiano.



Vejam se não tenho razão: cheguei em casa um dia desses e encontrei sobre a mesa o novo livro de poemas de Eloi Firmino de Melo, “Um floral de sombras”. A capa é bonita, os poemas são bons e me deixaram alegre um bom tempo. Outro dia, depois de algum tempo de aborrecimento numa agência bancária, ainda na fila do caixa eletrônico, recebo das mãos amigas do Águia Mendes outros dois livros de poemas: “Sol de algibeira”, em que o poeta passeia entre a morte e a paixão, e “Um boi pastando nas nuvens”, escrito para os nossos resquícios de infância.



É raro o dia em que não saio de casa de mãos abanando e volto com algum presente impresso dado por algum amigo poeta. Às vezes, nem tão amigo, às vezes nem tão poeta, mas a generosidade é boa e verdadeira.



Mas a generosidade que me cerca não se resume a livros bem ou mal escritos. Esta semana, uma vizinha, até que nem muito próxima, nos deu três abacates colhidos em seu próprio quintal. Me fez lembrar uns vizinhos que tive no Recife, com nossos quintais separados por um muro baixo que nos permitia saber das novidades sem sair de casa. O bom dessa intimidade é que, todos os sábados, entre as onze e o meio dia, lá estava um copo de cuba-libre me esperando suado em cima do muro.



Parece mentira que ainda existam vizinhos assim, por trás desses muros altos e cercas eletrificadas. Mas eles existem e nos dão de presente o fruto secreto de sua generosidade.



Ronaldo Monte.





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quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

NO VELHO OESTE (E SEM ARMAS)

NO VELHO OESTE (E SEM ARMAS)

Estamos ainda na segunda quinzena de janeiro e já temos o triste (louco, medonho, surreal) número de 114 mortos na cidade este ano (por enquanto, pois não vi os últimos noticiários). E não estamos em guerra civil (dizem), vivemos tempos de “paz”. Mas comparem nossa estatística de número de mortos com a de qualquer conflito armado mundo afora anunciado fartamente pelos meios de comunicação e verão que tal afirmativa é absurdamente falsa. Estamos em guerra, sim!!!! Guerra braba, descontrolada, cruel e injusta, pois quem tem mais grana para se proteger consegue ir escapando.
Vivo num bairro de classe média, remediada, de senhoras católicas, de artistas, funcionários públicos, estudantes: uma Gentilândia praticamente sitiada! Entregue à marginalidade da pobreza, da droga (que irmandade cruel essa entre o estudante universitário que divide um baseado com o louquinho da Marechal), do conluio entre a incompetência e o descaso de nossos três podres poderes.
Nosso minúsculo reino está condensado na democrática Praça da Gentilândia, onde o craque que outrora despontava no campinho entre mangueiras hoje é outro, cruel e sem possibilidade de gol. Ali, bem do ladinho, senhores e senhoras de preto pregam o fim de tudo, de todas nossas esperanças, e já quase anunciam o final do mundo. Em surdina preparam o golpe fatal: os velhos líderes (que um dia foram sonhadores jovens no Araguaia) organizam seus messiânicos seguidores para um ritual de suicídio coletivo que se realizará em breve na estação Benfica de nosso demoradíssimo metrô.
Enquanto isso, nossos meninos descem da Brasília, do Jardim América, dos mil buracos da Marechal e socializam na marra nossas parcas “riquezas”.
Enquanto isso, motoqueiros assassinos campeiam e matam nossos Eunucos e Eulinos.
Enquanto isso, nossos estudantes gazeiam aulas, fazem sinais de fumaça e perguntam (ou retornam?) ao pó.
E para nos proteger apenas o nosso Chapolim Colorado (de arco, cachaça e flecha), o índio Pelezinho.
E algumas piedosas senhorinhas, que preparam já as novenas de maio, quando Nossa Senhora (entre cânticos) peregrinará, de casa em casa, quase todo o bairro.
No lugar da hóstia o bolo de macaxeira, e do vinho, o copinho de Aluá.

Pedro Salgueiro

CARNAVAL

CARNAVAL
“E eu vou sair fantasiado de alegria por aí... mas na quarta-feira a gente vê que é mentira meu sorriso sem você.”
(Ednardo)
Nunca fui um folião de verdade, daqueles que se paramentam de fantasia, confetes e serpentinas e sai por aí (sozinho ou em turma) curtindo os quatro dias de contagiante alegria.
Sou um brincante frustrado, desses que adora o carnaval, curte o clima de festa dos outros, mas que se sente um peixe fora d’água no meio de um bloco (O máximo que consigo é acompanhá-lo assim meio de lado, como querendo me esquivar. Então me rendo à minha falta de jeito, procuro um cantinho calmo de calçada e fico olhando de longe. O último dos pipocas!).
Culpa talvez da benéfica rigidez de meu pai, para quem festas, namoro cedo e vícios eram coisas mais que proibidas para os onze filhos.
Cresci, pois, um sujeito duro de corpo, que não aprendeu dançar, nadar e só fui beber aos 35 anos.
Mas não foi por falta de tentativas nem de oportunidades. Quando criança, lá pelos anos 70, dava umas escapulidas com os primos para ver de longe os descontraído jovens da minha pequena cidade, era moda se jogar muita maisena e limpar narizes com misteriosos lençinhos. No outro dia bem cedo saíamos pelas ruas, admirados com as paredes brancas, catando serpentinas, confetes e latas para brincar no restante do dia.
Nos anos 80, morando em Recife, não perdia um bloco de bairro, um Pátio de São Pedro, um cordão de Olinda. Sempre de viés, meio envergonhado, ia (em vão) tentando me tornar um descontraído folião.
Já em Fortaleza nos anos 90, terra de quase nenhuma folia, me aquietei de vez. Admiti minha total falta de jeito para a coisa.
Mas adoro quando chega o período dos pré-carnavais (que, ao contrário de um carnaval sem nenhuma história, vai se tornando uma tradição) e vejo alegria e descontração no rosto das pessoas. Escolho alguns blocos e fico urubuservando de longe, latinha de cerveja na mão, ligeiro meneio de cabeça, mesmo com os calcanhares bem presos no chão.
E como para coroar minha falta de jeito com a folia, recentemente o bloco “Luxo da Aldeia” (que só toca compositores cearenses) se instalou na rua em que eu moro, umas três casas da minha, com palco virado para a Rua João Gentil e devidamente de costas para a nossa calçada.

PEDRO SALGUEIRO