quarta-feira, 29 de julho de 2009

Autobiografia com giz


(para Dalton Trevisan)


Apareceu na cidade um palhaço com um ouvido imundo.
Vaga pelas ruas com a impunidade que apenas os saltimbancos tentam demonstrar. Teve a petulância de, mal chegado, negar umas linhas para o nosso prestigioso jornal: quando muitos aqui venderiam a mãe, ou a mão. Diz ter poucas idéias por ano, e que não sabe a hora em que elas vêm ou vão. Fez sua casa no prédio antigo da cadeia — paredes robustas, chão áspero; como ornamentos somente dois armadores e a rede grossa e a mesa gasta onde lapida suas preces. Quando a idéia vem, quando vem, puxa o tamborete, afia a faca, apruma o esmeril entre os joelhos, e sua que sua. Da pouca frase resta o cascalho que joga pelas ruas nas raras manhãs em que se arrisca a sair. Deixar a toca só à tardinha, aí não mais de rosto limpo — o sorriso agora pintado na face: a boca fala, o ouvido escuta. Tudo é impunidade nestes gestos loucos: puxa a língua-de-sogra, enrijece a gravata, dá banana para o secretário de governo — tudo pode no final da tarde, a máscara lhe impede o pranto.
Anda pela cidade um médico insano. Diz que veio curar as doenças do mundo. Montou consultório na praça, cobra pouco, e já possui uma freguesia respeitável. Durante a manhã rega o jardim, poda os galhos do flamboyant — espalha as rosas frescas pelo chão, que somente as apanhará murchas: quando então realiza o ritual das três da tarde. Respira fundo; veste o macacão; põe as luvas, o nariz de cera, a peruca; pega o velocípede e sai por aí, fingindo a alegria de sempre.
Corre pelas calçadas um homem doido. Procura com insistência as praças, esmaga as flores, espanta o casal de namorados, consola dois velhos que conversam em silêncio. Atravessa as ruas em disparada, desmantelando o trânsito; mas quando o observamos atentos, assustado puxa um caco de espelho, que vira sorrindo em nossa direção.
Desliza pela noite um sorriso insano. Ouve coisas, distorce loisas. E nunca olha para frente...


[Conto do livro inédito 'Movimento Esperado']

Um comentário:

  1. Eita conto arretado de bão, Pedro! Aliás, já lhe dissera isso numa primeira leitura, quando vi no saltimbanco a cara dum sujeito bem acolá. Só agora, contudo, depois dessa leitura mais branda, pude perceber que a semelhança do camarada com o Dalton Trevisan não pode ter sido mera coincidência. Ou estarei vendo coisas? (rs)

    ResponderExcluir